05 de agosto de 2024
Os crimes de Furto com abuso de confiança ou mediante fraude, Apropriação Indébita e Estelionato possuem similaridade quanto às suas configurações, especialmente porque normalmente envolvem cenário de fraude, quebra de expectativa e dano patrimonial.
Este artigo tem como objetivo esclarecer a diferença técnica entre os três tipos penais, trazendo-se uma visão geral e processual aos leitores, tanto pelo viés da defesa quanto da acusação.
Explica-se:
Furto com abuso de confiança ou mediante fraude
Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Furto qualificado
§ 4º - A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido:
II - com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza
O tipo penal de Furto possui o verbo “subtrair” como central, no sentido de que o agente furtador tenha a intenção da mudança de propriedade do item.
Quanto ao furto qualificado, neste artigo, se esmiuçará as condutas de “abuso de confiança” e “mediante fraude”, vejamos:
Quando se fala sobre abuso de confiança, entende-se que já se existia uma relação prévia entre autor e vítima, o que facilitaria a consumação do crime, visto que, frente a relação de confiança, a coisa alheia móvel estaria sob vigilância menor.
Importante ressaltar que nesse tipo penal, não se exige a posse inicial lícita do bem, diferentemente do crime de apropriação indébita (art. 168, Código Penal), que será exposto a seguir.
Já quanto a fraude, o legislador tinha como escopo mencionar a ilusão quanto a vigilância da coisa alheia, diferentemente do crime de estelionato (art. 171, Código Penal) em que o agente busca o consentimento da vítima para se apropriar do bem móvel, como veremos no decorrer deste artigo.
· Exemplo 1: Pessoa que vai até a agência da Caixa Econômica Federal ou casa lotérica com cartão cidadão de terceiro para sacar os valores do seguro-desemprego. Consumação do delito ocorre no local que o saque ocorreu;
· Exemplo 2:Pessoa que vai até concessionária de veículos se identificando como cliente e pede para fazer “test-drive” do automóvel, evadindo-se do local e empreendendo fuga;
· Exemplo 3: Cliente paga em cinco notas de cem reais e o funcionário coloca uma no bolso deixando no caixa apenas quatro notas.
Apropriação indébita
Art. 168 - Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Nesse tipo penal, o verbo central é “apropriar”, tomando o cuidado de se observar que se trata de coisa alheia móvel de que o agente apropriador já tinha a posse ou detenção do referido bem, sendo exatamente esse ponto que distingue a apropriação do furto.
O crime se consuma quando o agente passa a agir como se o bem fosse seu, sem restituí-lo ao verdadeiro proprietário ou dando a ele destinação indevida.
Aumento de pena
§ 1º - A pena é aumentada de um terço, quando o agente recebeu a coisa:
I - em depósito necessário;
II - na qualidade de tutor, curador, síndico, liquidatário, inventariante, testamenteiro ou depositário judicial;
III - em razão de ofício, emprego ou profissão.
O parágrafo primeiro desse tipo penal aponta situações em que a pena inicial é majorada (aumentada). O legislador previu maior rigor para as situações descritas nesse parágrafo porque se pressupõe que a relação de confiança entre o Autor e vítima é ainda maior, sendo ainda mais reprovável.
Ainda, importante salientar o tipo penal exposto no artigo 168-A do Código Penal, que versa diretamente quanto ao crime de Apropriação Indébita em contexto previdenciário, configurando-se quanto o agente “Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional”. Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
O Código Penal também pune as condutas de “apropriar-se alguém de coisa alheia vinda ao seu poder por erro, caso fortuito ou força da natureza”, achar “tesouro em prédio alheio e se apropria, no todo ou em parte, da quota a que tem direito o proprietário do prédio” e achar “coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente, deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade competente, dentro no prazo de quinze dias”, nos termos do artigo 169, do Código Penal.
Ainda, no artigo 170 do Código Penal, é imposto que as mesmas previsões legais direcionadas ao furto qualificado são aplicáveis às modalidades de Apropriação Indébita.
Assim, este crime exige os seguintes requisitos para sua configuração: (i) bem entregue voluntariamente pela vítima; (ii) posse ou detenção do bem pelo agente, de início, lícita e desvigiada; (iii) coisa alheia móvel como objeto material; e (iv) superveniência de ânimo de assenhoreamento definitivo (animus rem sibi habendi) [1].
1. Exemplo 1:Funcionário de empresa que não devolve o notebook entregue a ele para que realizasse homeoffice;
2. Exemplo 2: Empresa de joias que fornece peças para blogueira comparecer em evento, mas essa não realiza a restituição das joias;
3. Exemplo 3: Pessoa que com dificuldade financeira deixa de repassar à Previdência Social contribuições descontadas das folhas de pagamentos dos empregados;
4. Exemplo 4: Funcionário que possui cartão de crédito da empresa para realizar compras comerciais e o usa para fins pessoais.
ESTELIONATO
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.
O tipo penal referente ao estelionato incute, obrigatoriamente, 1) a realização através um meio fraudulento, 2) indução da vítima em erro, 3) recebimento de vantagem ilícita e o 4) prejuízo alheio.
Explica-se que a vítima do estelionato acaba por ter falsa percepção da realidade, visto que foi induzida a erro, sendo certo que entrega o bem ao Autor de própria vontade, visto que acredita que o ato é idôneo. A Lei exige que a vítima represente criminalmente contra o Autor dos fatos, ou seja, indique expressamente às autoridades que tem interesse em ver suposto fraudador processado nas vias criminais.
É importante destacar que diferentemente dos crimes de furto ou apropriação indébita, no estelionato a vítima é induzida a erro e entrega/facilita o acesso do bem ao Autor porque acredita na realização do negócio.
O legislador aponta que, se o acusado for primário e a vantagem ilícita for de pequeno valor, as regras inerentes ao furto qualificado são aplicáveis nesse tipo penal. (§ 1º, art. 171, Código Penal).
Além disso, nas mesmas penas (um a cinco anos e multa), incorre quem: vende, permuta, dá em pagamento, em locação ou em garantia coisa alheia como própria; vende, permuta, dá em pagamento ou em garantia coisa própria inalienável, gravada de ônus ou litigiosa, ou imóvel que prometeu vender a terceiro, mediante pagamento em prestações, silenciando sobre qualquer dessas circunstâncias; defrauda, mediante alienação não consentida pelo credor ou por outro modo, a garantia pignoratícia, quando tem a posse do objeto empenhado; defrauda substância, qualidade ou quantidade de coisa que deve entregar a alguém; destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou agrava as conseqüências da lesão ou doença, com o intuito de haver indenização ou valor de seguro; emite cheque, sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento, nos termos do § 2º do art. 171 do Código Penal.
Nesse mesmo tipo penal é prevista a fraude eletrônica, ou seja, quando as informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro é realizada por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento (ou qualquer outro meio análogo), as penas nessas circunstâncias são de quatro a oito anos e multa, nos termos do § 2º-A do art. 171 do Código Penal.
Ainda quanto às fraudes eletrônicas, a legislação penal prevê aumento de pena de um terço a dois terços caso o crime seja praticado mediante a utilização de servidor mantido fora do território nacional, § 2º-B do art. 171 do Código Penal.
Cabe ainda apontar que quem organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento, pode ter punição de quatro a oito anos e multa, nos termos do artigo 171-A, do Código Penal.
O estelionato cometido contra idoso tem aumento de pena de um terço ao dobro, não necessitando de representação da vítima para o prosseguimento da ação. Também não se exige representação para prosseguimento da ação quando a vítima for, administração pública (direta ou indireta), criança/adolescente, pessoa com deficiência mental ou maior de setenta anos de idade ou incapaz.
· Exemplo 1: Site na internet que anuncia a venda de eletrodomésticos e ao receber o pagamento “sai do ar”, sem entregar o objeto comprado;
· Exemplo 2: Corretor financeiro que recebe valores para investimento e não os realiza;
· Exemplo 3: Funcionário que emite requisição de pagamento de produto com o nome correto do fornecedor, mas direciona o depósito de valores para sua própria conta pessoal;
· Exemplo 4: Pessoa que realiza ligação informando que trabalha em agência bancária e precisa dos dados pessoais e senha da conta do idoso, que fornece os referidos dados e perde valores guardados junto a instituição financeira;
· Exemplo 5: Investidor deposita valores para criação de produto novo para mercado sendo que os criadores sabiam que esse produto nunca poderia ser criado. Promessa de criação de produto com componente não existente na tabela periódica.
NOÇÕES PRÁTICAS GERAIS
Nos crimes de furto qualificado e apropriação indébita a vítima não precisa representar criminalmente o Autor dos fatos criminosos, já no caso de estelionato, essa representação é obrigatória. Essa representação deve ser feita diretamente às Autoridades e estar dentro do prazo decadencial de seis meses (contados a partir de quando se tomou conhecimento do golpe). Todos esses crimes são processados através do Poder Público (Ministério Público Estadual ou Federal), sendo que a vítima poderá contratar advogada para assisti-la na acusação.
Outro ponto que também vale a pena destacar é a possibilidade de NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL PARA PAGAMENTO/RESSARCIMENTO DO DANO MATERIAL CAUSADO, isso porque, com a restituição do valor total dano (objetivo da vítima), em alguns casos, pode-se se extinguir a punibilidade (ex: antes do ajuizamento de ação fiscal o responsável pelo financeiro da empresa repassa os valores previdenciários que reteve indevidamente e haviam sido descontados da folha de pagamento dos funcionários à Previdência Social), evitando-se a judicialização da questão.
Nos tipos penais discutidos nesse artigo, as ações todas são feitas sem violência ou grave ameaça, sendo que, caso a parte Autora seja primaria, pode ser contemplada com benefícios penais, tendo como maior exemplo o Acordo de Não Persecução Penal, exposto no artigo 28-A do Código de Processo Penal. Nesse acordo, caso cumpra todos os requisitos legais, desde que o Acusado confesse o erro e restitua o valor que causou de dano à vítima, poderá manter sua primariedade.
Importante apontar que a vítima, em todos esses crimes, precisa ter documentos que demonstrem a propriedade do bem, ao que, normalmente, em empresas, recomenda-se a realização de auditorias.
Reforço o apontamento de que essas são noções gerais quanto aos crimes de Furto com abuso de confiança ou mediante fraude, Apropriação Indébita e Estelionato. São crimes que exigem atuação técnica de excelência e é certo que cada caso deve ser tratado na proporcionalidade de suas especificidades.
Em todas as situações inerentes aos crimes patrimoniais, seja na condição de vítima ou de autor/acusado, a atuação de advogada especialista na área criminal certamente fará diferença para o desenrolar do caso.
Jéssica Nozé, advogada especialista em Processo Penal e Ciências Criminais.