31 de dezembro de 1969
Dos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral, temos os artigos 312 e 313, do Código Penal, que tratam sobre Peculato.
Entende-se por peculato, nos termos gerais, “Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio”.
A partir dessa premissa, temos 08 (oito) classificações de ocorrência deste crime, que serão descritas e detalhadas no decorrer deste artigo (Peculato-Apropriação, Peculato-Desvio, Peculato-Furto, Peculato-Culposo, Peculato-malversação, Peculato-uso, Peculato mediante erro de outrem/Peculato-estelionato, Peculato-eletrônico).Porém, por primeiro, cabe realizar as seguintes considerações:
1. O sujeito ativo do delito (autor/quem pratica o crime) necessariamente é funcionário público [1] (municipal, estadual ou federal), ou seja, “delicta in officio”;
2. O sujeito passivo do delito na maioria das vezes é o Estado (município, estado ou federação), podendo também ser um terceiro-particular que se viu prejudicado;
3. O funcionário público só tem acesso ao dinheiro, valor, títulos de crédito, bens moveis, públicos ou particulares, banco de dados ou sistemas informatizados em razão do seu cargo ou função;
4. O bem jurídico tutelado por este tipo penal é tanto a manutenção da administração pública (resguardo do patrimônio do Estado) quanto a preservação do dever funcional do funcionário público, bem como a preservação de dados ou informações relevantes para o Estado.
5. Ação penal é pública incondicionada, sendo possíveis negociações penais entre Defesa e Acusação, “plea bargain”, frente a aplicação do artigo 28-A do Código de Processo Penal (Acordo de Não Persecução Penal) ou dos institutos da Transação Penal ou Suspensão Condicional do Processo, ambos previstos na Lei 9.099/95.
Assim, feitas as referidas considerações, vejamos as modalidades de Peculato previstas em lei:
Peculato-Apropriação:
Se trata de conduta exposta no “caput” do artigo 312, do Código Penal, ou seja, o dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel público é apossado ou apropriado pelo funcionário.
Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.
É necessária a presença do dolo, ou seja, nesse caso, o funcionário tinha a intenção de se apossar ou se apropriar do valor.
EXEMPLO 1: Policial militar/civil/federal que utiliza a viatura da Polícia para buscar os filhos na escola, levá-los ao shopping, transportar amigos, familiares e terceiros, passear em ocasiões pessoais.
EXEMPLO 2: Gerente de banco público (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal etc.) que possui acesso a conta de vários correntistas e se apropria de valores dessas contas sem a autorização dos clientes.
As penas podem ser de 02 (dois) a 12 (doze) anos de reclusão e multa.
Peculato-Desvio:
Nesse cenário o funcionário público altera ou desvia o destino natural do dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular.
É necessária a presença de dolo específico, ou seja, nesse caso o funcionário tinha a intenção de modificar/alterar o destino da verba ou dos bens móveis para proveito próprio ou alheio.
Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.
EXEMPLO 1: Deputado Federal que utiliza secretária do gabinete parlamentar para atividades inerentes a empresa particular dele. Salário da secretária pago pela União ao que o desempenho das atividades da moça se direciona para empresa privada do Deputado. O Supremo Tribunal Federal já ponderou “diferença entre usar funcionário público em atividade privada e usar a Administração Pública para pagar salário de empregado particular, o que configura peculato” ( Inq nº 3.776/TO, Primeira Turma, Relatora a Ministra Rosa Weber, DJe de 4/11/14)
EXEMPLO 2: Parlamentar que contrata assessor para prestar serviços de confiança inerentes à administração pública e recebe parcela ou fração do salário destinado ao referido assessor, situação popularmente conhecida como “rachadinha”.
As penas podem ser de 02 (dois) a 12 (doze) anos de reclusão e multa.
Peculato-Furto:
Se trata de conduta exposta no parágrafo 1º do artigo 312, CP, qual seja:
§ 1º - Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.
Há a configuração de peculato-furto quando o funcionário público subtrai (furta) dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel público de que tem a posse em razão do cargo.
Destaca-se que também incorre nas penas deste tipo penal o funcionário público que facilita, ajuda ou auxilia terceiro na empreitada criminosa. Ou seja, caso o funcionário público ajude um particular a subtrair para si ou para outrem bem que teve acesso em razão de sua função, também recairá nesta tipificação.
É necessária a presença do dolo, ou seja, nesse caso, o funcionário tinha a intenção de subtrair/furtar o valor ou bem móvel.
EXEMPLO 1: Funcionário público que subtrai para si computador da repartição pública ou o vende na internet.
EXEMPLO 2:Funcionário público que furta itens do almoxarifado ou dos valores do caixa do órgão público.
As penas podem ser de 02 (dois) a 12 (doze) anos de reclusão e multa.
Peculato-Culposo:
O peculato-culposo está previsto no parágrafo 2º do artigo 312, CP, qual seja:
§ 2º - Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem:
Nesse cenário, o funcionário público não age com dolo, mas com culpa, ou seja, negligência, imprudência ou imperícia, faltando com o dever de cuidado que seu cargo ou função lhe exige, facilitando assim que um terceiro se aproprie, desvie ou subtraia dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público do qual o agente público tinha acesso em razão de seu ofício.
Novamente, não é necessária a presença do dolo, mas sim da culpa (negligência, imprudência ou imperícia), o funcionário público não tinha a intenção de se apropriar/desviar ou subtrair bens, mas causou o dano pela falta de cuidado.
É cabível a reparação integral do dano para que se evite a condenação do funcionário. Caso a reparação seja feita antes de sentença penal transitada em julgado, a punibilidade do agente é extinta, ou seja, o processo é encerrado. Caso a reparação seja feita após sentença, a pena poderá ser reduzida em até metade, nos termos do parágrafo 3º do mesmo artigo.
§ 3º - No caso do parágrafo anterior, a reparação do dano, se precede à sentença irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena imposta.
EXEMPLO 1: Policial que esquece sua arma em cima do balcão da Delegacia de Polícia e terceiro a furta.
EXEMPLO 2:Funcionário de banco público que esquece o cofre do estabelecimento aberto e terceiro se aproveita da situação para subtrair valores/joias.
As penas podem ser de detenção, de 03 (três) meses a 01 (um) ano.
Peculato-malversação
Em todas as situações narradas anteriormente (peculato-apropriação, peculato-desvio, peculato-furto e peculato-culposo) mencionou-se bens públicos, o peculato-malversação se trata das exatas mesmas condutas, mas com bens de natureza particular.
EXEMPLO 1: Funcionário público que se apropria de veículo particular apreendido em ação de busca e apreensão.
EXEMPLO 2: Funcionária de banco público que se apropriou de joias penhoradas pela instituição.
Peculato-uso (polêmica)
Funcionário público que utiliza em proveito próprio ou alheio, temporariamente/transitoriamente determinado bem móvel público ou particular a que teve acesso apenas em razão de sua função.
Esse cenário é bastante delicado e polêmico no meio do direito porque se trata de uma construção doutrinária que visa distinguir a conduta do funcionário quanto a apropriação permanente (há posicionamento quanto à desnecessidade de intenção de permanência da posse do bem, no sentido de que o mero uso irregular já configuraria o ilicito, vide STF - HC 108.433-AgR, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 15.8.2013) e a apropriação temporária (há posicionamento no sentido de que a temporariedade enseja a atipicidade por falta de vontade do agente em reter definitivamente o bem para si, vide STF - RHC 103.559.)
Aplicação da bagatela (princípio da insignificância):
Nos crimes contra a administração pública não se torna possível a aplicação do princípio da insignificância por força Súmula 599 do Superior Tribunal de Justiça. Registra-se que existem precedentes (pouquíssimos) relativizando a referida Súmula quanto a aplicabilidade da bagatela em crimes contra a administração pública, observando-se as devidas as peculiaridades dos casos e atentando-se a a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Exemplifica-se: RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL EM HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME PRATICADO EM PREJUÍZO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ART. 171, § 3.º, DO CÓDIGO PENAL. APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IRRELEVÂNCIA DA CONDUTA NA ESFERA PENAL. MÍNIMO DESVALOR DA AÇÃO. VALOR ÍNFIMO DO PREJUÍZO. ESPÉCIE NA QUAL NÃO INCIDE A ORIENTAÇÃO SEDIMENTADA NA SÚMULA N. 599 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, MUTATIS MUTANDIS. RECURSO PROVIDO 1. Hipótese na qual o Recorrente, após adquirir, em nome de seus filhos, três bilhetes estudantis de transporte público integrado pelo preço unitário de R$ 2,15 (dois reais e quinze centavos) – metade do valor integral (R$ 4,30 - quatro reais e trinta centavos) – utilizou-se deles para vender acesso irregular à Estação Corinthias-Itaquera, do metrô de São Paulo, por R$ 4,00 (quatro reais). Conforme a denúncia, um dos bilhetes foi usado regularmente duas vezes, e os outros dois foram utilizados indevidamente uma vez, cada. Isso resultou em vantagem financeira ao Recorrente de R$ 3,70 (três reais e setenta centavos), e prejuízo financeiro à São Paulo Transporte S/A - SPTrans de R$ 4,30 (quatro reais e trinta centavos). (....)(STJ, 6ª Turma, RHC n. 153.480/SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, j. em 31/05/2022)”
Peculato mediante erro de outrem/Peculato-estelionato
Esta tipificação encontra-se no artigo 313 do Código Penal e diverge dos outros tipos de peculato porque neste cenário o funcionário público não deveria ter a posse do bem ou valor, público ou particular. O funcionário passa a ter a posse do referido bem ou valor em detrimento de um erro/equívoco cometido por terceiro.
Salienta-se que o mero recebimento do bem móvel não configura ato típico, ao que, a conduta criminosa somente se configura quando esse recebimento ocorre no exercício do cargo, não em razão do cargo.
Apesar da nomenclatura “peculato-estelionato”, o funcionário público nessas circunstâncias não induz ninguém a erro, apenas recebe de terceiro bem/valor que sabia não poder receber, apropriando-se assim indevidamente da quantia/objeto.
Caso o erro seja provocado intencionalmente ou induzido pelo próprio funcionário público, o tipo penal passa a ser estelionato (artigo 171 do Código Penal, obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:), por isso para a configuração do peculato mediante erro de outrem ou peculato-estelionato é imprescindível que o fornecimento e recebimento do bem/valor tenha ocorrido em detrimento de erro de outrem.
Art. 313. Apropriar-se de dinheiro ou qualquer utilidade que, no exercício do cargo, recebeu por erro de outrem:
EXEMPLO 1: Funcionário público que, por erro do financeiro, acaba recebendo valores maiores do que deveria receber em folha de pagamento.
EXEMPLO 2: Funcionário público que tem casa própria na cidade em que foi alocado para trabalhar e recebe auxílio-moradia.
As penas podem ser de reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Peculato-eletrônico
Neste cenário o legislador entendeu por bem preservar os sistemas informatizados e os bancos de dados pertencentes à Administração Pública. nos seguintes termos:
>Inserção de dados falsos em sistema de informações
Art. 313-A. Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.
>Modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações
Art. 313-B. Modificar ou alterar, o funcionário, sistema de informações ou programa de informática sem autorização ou solicitação de autoridade competente:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. As penas são aumentadas de um terço até a metade se da modificação ou alteração resulta dano para a Administração Pública ou para o administrado.
As referidas inserções ou modificações/alterações irregulares no sistema de informações públicos realizadas pelo funcionário, para configurar ilícito penal, deverão ser feitas na maneira dolosa, ou seja, com a intenção de constar dado falso no sistema para benefício próprio ou de outrem.
EXEMPLO 1: Servidora pública federal que realiza acréscimo de dados falsos no sistema da administração pública para que determinada pessoa receba auxílios emergenciais.
EXEMPLO 2: Funcionário público que cadastra seus filhos como funcionários da repartição pública para que estes tenham acesso ao local e usufruam das instalações.
A defesa em procedimentos em que se apura o cometimento de crime de peculato deve ser realizada através de acompanhamento jurídico por profissional especializada na área criminal, visando compatibilidade técnica com a complexidade do caso. Orienta-se que a comunicação de eventual cometimento crime de peculato às autoridades seja realizada após orientação jurídica.
Jéssica Nozé, advogada especialista em Processo Penal e Ciências Criminais.
Site: https://www.jessicanoze.com/
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[1] Funcionário público, Código Penal l l: Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.
§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.
§ 2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público.
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